Depois do Fim: Vamos conversar sobre a tragédia de Cyberpunk 2077… DE NOVO!
Nossa coluna Depois do Fim é um espaço em que nós da Arkade estendemos a discussão sobre um game após publicarmos seu review. Seja para discutirmos sem ressalvas a história e final de algum game sem nos preocuparmos com spoilers, falar sobre nossas experiências pessoais e etc.
Há alguns dias eu publiquei um Depois do Fim sobre Cyberpunk 2077, pouco mais de um mês do lançamento do game. Talvez meu timing tenha sido lento, mas era muita coisa para se falar e a cada dia mais informações surgiam em relação a sua produção.
Quando julguei que a história tinha atingido seu ápice, ou ao menos que não poderia mais nos surpreender, decidi publicar o texto, um dia após o co-fundador do estúdio, Marcin Iwinski, lançar um vídeo pedindo desculpas sobre o estado do game. Parecia ser o momento certo para se falar abertamente sobre isso. Com tempo de sobra pra quem pretendia jogar no mês de lançamento já ter jogado e principalmente com tempo para entender plenamente toda a situação.
Mas meus amigos, eu estava errado. Ainda havia mais nessa história, muito mais! A situação evoluiu de uma forma que não é possível simplesmente deixar pra lá. E o Depois do Fim de Cyberpunk 2077 já é uma leitura muito grande para ser apenas atualizada. Então, pela primeira vez na história, vamos para um Depois do Fim parte 2! (Se você ainda não leu a Parte 1, aconselho que leia-a antes de prosseguir!)
Acorde Samurai, temos um game para lançar!
Antes de escrever todo o longo texto sobre a história de Cyberpunk 2077, eu decidi que primeiro veria o máximo que conseguiria ver no game. Infelizmente não consegui ver 100% do que o game oferece. Minha versão é a de Playstation 4 e alguns serviços (objetivos secundários que não influenciam na história, como roubar um local ou eliminar um alvo) não podem ser iniciados ou finalizados por conta de alguns bugs.
Após ter finalizado o game todas as quests possíveis (as que não estavam bugadas), eu tratei de me inteirar sobre tudo o que saía na mídia sobre os problemas no desenvolvimento do game: Falta de tempo, crunch, negligência das versões da geração passada, mentiras quanto ao conteúdo do game, conteúdo cortado e etc.
Talvez muita gente tenha esperado que eu deixasse a raiva fluir e condenasse fortemente toda a CD Projekt Red pelo o que aconteceu. Mas eu não quis fazer isso, por algumas razões: A primeira delas é que, honestamente, eu não queria escrever um texto de forma tão agressiva, mas sim debater de uma forma detalhada e didática o que tinha acontecido, deixando o julgamento para você que está lendo (e deixando minha opinião sincera em vários momentos).
E a segunda razão era por solidariedade aos seus desenvolvedores. Muita gente os tem culpado de forma extrema pelo o que aconteceu, mas já ficou muito claro de quem é a culpa pelo game ter saído no estado em que saiu: Sua diretoria e a parte administrativa da produtora, ou seja, os “engravatados” da alta cúpula.
Quem realmente colocou a mão na massa para produzir o game passou foi muito sufoco. Crunch excessivo, pouco tempo para tentar recriar a visão que o estúdio tinha para o game, ter que criar e recriar o game várias vezes até funcionar, etc. Tudo isso nós já sabíamos, mas uma nova reportagem mostra como realmente foi isso. E olha, o caso que já era revoltante agora se tornou muito pior.
Crunch + Milagre + Mentiras
Pois bem. Então vamos ao que realmente interessa. O jornalista Jason Schreier, ex-Kotaku US e que atualmente escreve para o site Bloomberg, lançou uma extensa reportagem sobre entrevistas que fez com o pessoal da CD Projekt Red, tanto funcionários atuais quanto ex-funcionários. E todas essas pessoas contaram o que realmente se passou na produção do game.
Para começar, já é de conhecimento público que o game foi anunciado em 2012, mas só em 2016 que sua produção foi iniciada. Isso deu ao time cerca de quatro anos para tornar a ideia do game em realidade. E como ficou bem provado, quatro anos foi pouco tempo para tamanha tarefa. Mas até então não sabíamos como haviam sido esses quatro anos. E bem, agora sabemos.
O desenvolvimento de Cyberpunk 2077 começou normalmente, mas já com certos problemas. Nessa época, Adam Badowski, que era chefe do estúdio, se tornou diretor do projeto. Segundo o pessoal da CD Projekt Red que deu entrevista (eu os chamarei de “fontes” daqui em diante), Badowski exigiu mudanças completas no projeto, entre elas a mudança da perspectiva em terceira pessoa para primeira pessoa.
Por conta de muitas dessas mudanças, alguns desenvolvedores grandes dentro do estúdio tiveram várias discussões e divergências criativas, deixando o estúdio devido a isso. Seguindo isso, vieram os problemas na produção. Havia muito trabalho a ser feito e segundo as fontes a gerência da produtora não estava preocupada com isso, mas sim em vender o produto, em investir em seu marketing.
A gerência incentivava os desenvolvedores a trabalharem mais do que a carga horária habitual, com muitos deles chegando a trabalhar 13 horas por dia, cinco dias por semana! E tudo se agravou ainda mais quando a E3 2018 estava chegando.
Na E3 2018 a CD Projekt Red apresentou uma demo para jornalistas, que mostrava uma das missões do game e muito conteúdo. Se você se lembrar bem, nessa época todos os que puderam assistir a demo ficaram muito impressionados e empolgados com o que viram, elogiando muito o escopo do game. Porém… essa demo era falsa!
Trailers e demos que não refletem exatamente o resultado final de um game são coisas muito comuns, que acontecem sempre. Mas o caso de Cyberpunk 2077 foi muito pior. Pois essa demo apresentada na E3 2018 foi criada separadamente do game, sem que o game sequer tivesse forma ainda!
A demo mostra muita coisa, mas não mostrava nada que estava no game, pois nessa época a CD Projekt Red não tinha nem mesmo terminado os códigos de gameplay. As fontes disseram que essa demo foi um desperdício de meses de trabalho que deveria ter sido usado para a produção do projeto real.
Pulando 1 ano na história, na E3 2019, a CD Projekt Red havia anunciado que o lançamento do game seria no dia 16 de abril de 2020. Internamente os desenvolvedores achavam que o anúncio era uma piada, pois seria impossível terminar o game em tão pouco tempo, com alguns ainda comentando em entrevista que imaginavam que o lançamento seria marcado para 2022, para dar tempo de terminar o projeto.
Porém, para o alto escalão, adiamento não era uma opção. O game tinha que sair e iria sair. Os desenvolvedores já trabalhavam 13 horas por dia, eles teriam que dar um jeito de conseguir essa façanha. E foi devido a isso que os cortes na produção começaram: Sem a IA robusta prometida para os NPCs, sem roubos e emboscadas com carros, sem corridas pelas paredes, sem carros voadores, sem os trens que percorrem a cidade e etc. Muita coisa foi tirada para que esse prazo pudesse ser cumprido.
E não apenas isso, toda vez que alguém questionava a gerência sobre o trabalho, mostrando os problemas enfrentados e dizendo que o prazo era apertado demais, eles eram respondidos com “vocês conseguiram fazer The Witcher 3! Vocês conseguem dar conta do trabalho!” – Ou seja, esperava-se um milagre.
The Witcher 3 também foi produzido em apenas quatro anos, e seu lançamento também foi conturbado, com muitos bugs e glitches. Mas Cyberpunk 2077 era um sistema completamente novo. The Witcher é uma série medieval com espadas e magias, Cyberpunk 2077 era um game futurista com armas de fogo, sistemas eletrônicos, carros e etc.
Por conta disso, a produtora precisaria de sistemas e engines completamente novos para criar o projeto. E decidiram criar uma engine própria para isso, a Red Engine. O problema, segundo as fontes, é que a engine estava sendo construída paralelamente ao desenvolvimento do game. Um desenvolvedor chegou a comparar a situação dizendo: “É como tentar conduzir um trem enquanto os trilhos estão sendo colocados bem na sua frente”.
A diretoria e a gerência estavam mais preocupadas era com os resultados das vendas e a arrecadação de investimentos. Largando nas mãos dos desenvolvedores todo o trabalho pesado sem se preocupar no quanto de trabalho precisaria ser feito. Foram muitas mudanças repentinas, que obrigaram o game a ser recriado do zero, muitas mudanças de roteiro e escopo, são muitas coisas para listar.
No fim, ficou na mão dos desenvolvedores operar um milagre para o game sair em apenas quatro anos da forma que havia sido prometido (isso sem contar os adiamentos). E foi somente no final de 2019 que a diretoria enfim reconheceu que não houve tempo suficiente para a produção. O que resultou nos adiamentos, que foram se acumulando até o game enfim ser lançado no dia 10 de dezembro.
O plano original era lançá-lo antes do Playstation 5 e Xbox One. Assim, o hype seria saciado, todo mundo jogaria e o estúdio poderia então focar na conversão para a nova geração. Mas como se sabe, em algum momento o plano mudou e a geração passada deixou de ser prioridade, com o foco movido para a nova geração, que ainda não recebeu suas versões.
E por fim, o game foi lançado no estado em que se encontrava. Nos PCs, Playstation 5 e Xbox Series X os jogadores encontraram um game solido, que possuía problemas mas funciona de forma satisfatória. E um game que mesmo não tendo muito de seu conteúdo prometido, ainda assim oferecia muita coisa e era divertido.
Mas, quem jogou no Playstation 4 e Xbox One recebeu um produto claramente inacabado. Após os patches lançados o game melhorou bastante em questão de performance, mas muitos bugs permaneceram, além dos constantes crashes. E segundo as fontes, a equipe não foi capaz de fazer o controle de qualidade dessas versões, pois devido a pandemia do COVID-19, muitos desenvolvedores precisavam trabalhar em casa, sem acesso aos dev kits do Playstation 4 e Xbox One.
Agora, a CD Projekt Red está trabalhando para entregar todas as correções, para todas as versões do game, mirando até o meio do ano para que a experiência “base” seja jogável por todos. E quem vai ter que tornar isso realidade? Novamente os desenvolvedores, que já tiveram uma gigantesca parcela de sofrimento em todo esse trabalho.
A tentativa de redenção do estúdio e a dor de cabeça dos devs
Essa é uma situação incrivelmente surreal. Quando o game foi lançado e o mundo viu o estado em que se encontrava, o hype de grande parte do público simplesmente desabou. Ainda assim, o game vendeu muito bem em seus primeiros dias e pagou seu próprio investimento muito rápido.
Sendo bem honesto, eu gostei do game, mesmo com seus muitos problemas e mesmo sabendo que houve muita coisa cortada. Ele me divertiu por dezenas de horas, mas no final, eu realmente senti falta de mais e eu sinceramente espero que tudo o que foi cortado seja adicionado novamente ao game através das futuras DLCs gratuitas. Pois sabe-se que entre os conteúdos cortados estão incontáveis linhas de diálogo, que certamente fizeram falta.
Por pior que pareça a situação, Cyberpunk 2077 ainda pode ser salvo, no mesmo estilo de No Man’s Sky. E segundo vários rumores, esse é o objetivo do estúdio, além é claro de reconquistar a confiança do público. O problema é que a situação se encaminhou para como está atualmente com todos dentro da CD Projekt bem conscientes disso. Ou, melhor dizendo, com os desenvolvedores cientes e tentando fazer a diretoria entender isso.
Mas, para Cyberpunk 2077 ser salvo, o trabalho cai novamente nas costas dos desenvolvedores. Os mesmos que trabalharam 13 horas por dia, que tinham divergências criativas com a parte corporativa da produtora e que foram incumbidos da tarefa de fazer um milagre impossível com tamanha carga de trabalho e pouco tempo disponível.
É por isso que quando vejo que muita gente culpa os desenvolvedores pelo fracasso do game, entro na conversa para defendê-los. Assim como o próprio Marcin Iwinski falou em seu vídeo de desculpas, os desenvolvedores apenas cumpriram as ordens que vieram de cima. Eles são funcionários de uma empresa, criar os games é o trabalho deles e infelizmente eles não são livres para criarem o que bem quiserem, eles precisar seguir ordens e justamente essas ordens tornaram o desenvolvimento em um completo caos.
É possível que a CD Projekt Red recupere a confiança dos jogadores? Sim, é possível, mas não agora. Nesse momento o estúdio já está focado na reparação de danos, tanto dentro do game, como com a comunidade gamer e seus acionistas. O estúdio lá lançou um roadmap de atualizações, com a primeira grande atualização de 2021 chegando no final de janeiro.
Eu tenho certeza que o game será salvo e seus bugs serão corrigidos. Quanto ao conteúdo cortado, rumores dizem que serão reinseridos no game e honestamente eu espero muito que sejam. O game precisa, além de conserto, de revitalização, tanto para se tornar aquilo que foi comprado mas não foi entregue, tanto para valer a espera daqueles que ainda não jogaram.
Já quanto ao estúdio, ele terá muito trabalho para recuperar a confiança do público e acredite, não vai conseguir isso tão rápido. A CD Projekt Red é um estúdio com poucos títulos em seu currículo, tendo basicamente a trilogia de The Witcher, Gwent, Thronebreaker e Cyberpunk 2077. O estúdio não é como a EA ou Ubisoft, que tem muitos outros games em produção simultaneamente. Cada produção deles é o projeto único em longos períodos de tempo, eles não podem se dar ao luxo de errar novamente.
O vídeo de desculpas foi necessário e aparentemente ajudou um pouquinho o estúdio, que recuperou cerca de 6% de valor de ações com essa atitude (isso após perder cerca de 30% de valor com o lançamento do game). Mas o caminho é longo, os investidores do game estão processando a CD Projekt e até mesmo o órgão de defesa do consumidor polonês está investigando o game e preparando uma ação.
Após Cyberpunk 2077 for finalmente finalizado, isso é, com suas DLCs lançadas e seu modo multiplayer, será hora do estúdio seguir para seu próximo projeto, que aparentemente será mais um game na franquia The Witcher. Quando esse momento chegar, o fantasma de Cyberpunk 2077 assombrará o estúdio. Externamente, com a desconfiança do público. E principalmente internamente, pois o estúdio precisará acertar em cheio se quiser recobrar a confiança do público.
Tudo isso no fim se tornou uma lição para todos. Uma lição para que os engravatados de grandes estúdios parem com as promessas falsas e com o desrespeito com seus próprios funcionários. Uma lição para o público, de que o hype, apesar de ser algo legal, movido a empolgação e interação, pode ser um armadilha muito perigosa. E uma lição para todos, seja dentro ou fora do mundo dos games, de que trabalho é algo que precisa ser levado a sério, com planejamento, metas e respeito.
Muitos projetos incrivelmente ambiciosos virão pelo futuro (com rumores já apontando para a produção de GTA 6), muitos investimentos e muitos adiamentos. Confiança não se conquista com palavras bonitas mas sim com ações, e o caso de Cyberpunk 2077 vai ecoar por muito, muitíssimo tempo no mundo gamer.
Finalizo desejando boa sorte para a CD Projekt Red. Lembre-se, por mais que a empresa tenha feito algo imperdoável, lá existem muitos funcionários que não tiveram escolha a não ser seguir ordens. E não vejo como saudável desejar a queda do estúdio como um todo. Porém, os responsáveis por esse desastre precisam sim arcar com as consequências, sejam elas financeiras, legais ou até morais. E mesmo com tudo isso, a história do estúdio mostra que eles se preocupam sim com o consumidor.
Ninguém quer um “novo Cyberpunk 2077” sendo lançado no futuro. Desejamos ter as expectativas respondidas e ser surpreendidos. E é claro que isso tem ficado cada vez mais difícil, pois quanto mais se evolui, mais exigente fica o público consumidor.
E acima de tudo, minha solidariedade fica com todos os desenvolvedores do game, que se não bastasse todo o trabalho exaustante empregado na produção e lançamento, ainda tiveram que receber muito ódio e hostilidade, por coisas que não são culpa deles. Pois afinal, eles avisaram que as coisas dariam errado, desde o começo.