De Volta Para o Arkade: A história da censura aos games
Conhece a história dos videogames? Conhece mesmo? Pois pra quem é historiador de videogame e quem quer aprender um pouco mais, entre na nossa “DeLorean” e vamos ver como começou a censura nos games!
É muito bom pensar no futuro, mas também é importante aprender sobre tudo que veio antes. Bem vindo ao De Volta Ao Arkade, onde te levamos em uma viagem pelas pessoas, companhias, idéias e, mais importante, os games que nos levaram para onde estamos atualmente. Hoje, o medo, o pânico e as mentiras da censura nos games.
Apesar dos games serem muito jovens em relação a outras formas de arte (compare os games, que tem quarenta anos, aos filmes, que tem mais de cem), eles já passaram por várias lutas com uma das maiores inimigas da auto-expressão humana: a censura. Mas o que é censura e o que é regulação? Como é que o Brasil reagiu a violência nos games? E como é que quatro pixels brancos em uma tela preta levaram a uma batalha na corte suprema dos Estados Unidos? Tudo isso e muito mais na nossa viagem pela história da censura nos games.
A Corrida para a Morte
Em 1976, a empresa Exidy lançou um novo game chamado Death Race para os então recentes arcades. Basado no filme Corrida da Morte – Ano 2000, o conceito por trás do game era simples: você e um amigo controlam carrinhos que devem atropelar o maior número de pessoas possível (algo que veio diretamente do filme, onde o vencedor da titular corrida era quem matava mais pedestres no caminho).
Para nós, o game parece coisa de criança. Mas para as pessoas de 1976, era uma desgraça. Quando você atropelava uma pessoa em Death Race, uma cruz aparecia, seguida por um grito de baixa qualidade. Isto foi o suficiente para muitos pais da época declararem o game uma ‘afronta as tradições morais dos Estados Unidos‘.
“Eu choro ao pensar o que vai acontecer depois se a opinião pública não acabar com esta atrocidade,” disse Gerald Dreissen, membro do Conselho Nacional da Segurança, em uma entrevista para um jornal da época. Games já haviam sido atacados anteriormente. O estado de Nova York, por exemplo, havia banido pinballs por serem ‘máquinas que transformam bons jovens em criminosos drogados’. Estas reclamações deram inicio ao maior inimigo dos videogames: o pânico moral.
Resumidamente, esta temível frase se refere a um sentimento de medo que nasce quando uma sociedade vê um ‘mal’ prestes a destruí-la. Pânicos morais podem acontecer com qualquer coisa, especialmente no nosso mundo regido pela mídia. Qualquer pequena ameaça a uma ‘regra moral’ da sociedade vira o maior mal que já existiu na face desta Terra, seja este mal um cantor funk ou os videogames.
Com os argumentos em mãos para alimentar mais um pânico moral, a ideia de que videogames como Death Race podiam levar a crianças mais violentas começou a se espalhar pelos Estados Unidos. A ideia era simples: no momento em que a criança atropelasse aqueles quatro bloquinhos brancos na tela, ela se acostumaria tanto com a ideia que poderia atropelar alguém no mundo real.
É claro, para este argumento ser considerado válido, vários obstáculos teriam que ser pulados. A criança deveria ver a pessoinha feita de cinco pixels e imaginar que esta pessoa é a mesma coisa que alguém no mundo real. E ela teria que conectar o atropelamento no game, que é instantâneo e limpo, a um atropelamento no mundo real, que é provavelmente a coisa mais aterrorizante que alguém pode ver.
Mesmo assim, as reclamações não foram ignoradas. Quando a Nintendo chegou nos Estados Unidos, ela começou a auto-regular os seus próprios games, removendo coisas que podiam ser consideradas ofensivas para outros mercados. Violência a religião foram removidos de clássicos como The Legend of Zelda e Pokémon Red para que a Nintendo ganhasse o respeito dos pais de seus consumidores. Isto não era censura, mas sim, como disseram muitos executivos da Nintendo of America, ‘capitalismo em ação’.
Tudo ia bem. Até um fatídico dia em 1992.
O Kombat começa
Quando Mortal Kombat apareceu nas prateleiras, as pessoas entraram em choque. Na mente deles, videogames eram que nem os desenhos clássicos dos Looney Tunes: mundos fantasiosos onde ninguém se machuca, onde Mario pula em cima de um Goomba sem problemas, e onde sangue simplesmente não existe. Mortal Kombat destruiu esta imagem não só pelo fato de ter sangue, mas porque este sangue foi mostrado de um modo extremamente realista.
Este foi o divisor de águas no mundo dos videogames. Antes, a criança deveria fazer uma grande abstração para conectar a violência nas telas a violência no mundo real. Agora, o game fazia essa conexão para ela. Lá estavam pessoas de verdade arrancando cabeças, com sangue e pedaços indo para todo o lugar. Nem a versão para o Super Nintendo, que trocou a cor do sangue para verde, conseguiu diminuir o impacto que o game fez nas mentes de consumidores do mundo todo.
Não foi só Mortal Kombat que chocou o planeta. Night Trap, lançado para o Sega CD no mesmo ano, usava filmes feitos com atrizes de verdade para contar uma história onde você decidia o destino de várias garotas adolescentes usando roupas reveladoras (para a época) que podiam ou sobreviver ou morrer.
Uma das cenas mais ‘aterrorizantes’ do game, que se promoveu como uma paródia dos filmes B de vampiro, era um momento onde o jogador podia deixar uma garota ser capturada. Enquanto ela chorava e tentava se escapar, homens de preto prendiam uma coleira em seu pescoço que começava a sugar o seu sangue.
Naquele ano, o senador Joe Lieberman mandou várias cartas para vendedores, descrevendo o game como ‘ofensivo a mulheres e simplesmente repugnante’. Duas grandes vendedoras (Toys-R-Us e Kay-Bee-Toys), tiraram o game das prateleiras. Logo depois, o senador, junto com outros membros do congresso americano e ‘pais preocupados’, anunciou um ultimato para a industria dos video games: “avisem as crianças do que elas estão comprando ou o governo vai agir”.
A promessa feita pelas desenvolvedoras de games durante as reuniões no congresso americano eram simples: “até o final de 1994 teremos um sistema de regulamento”. Na hora de desenvolver este sistema, as empresas se basearam nos eventos de 1922, quando, ao se verem na mira de pessoas preocupadas com o conteúdo moral que eles produziam, vários estúdios de cinema se juntaram para criar um sistema de auto-regulação, a Motion Picture Association of America. Os games fariam a mesma coisa, e logo nasceu a Entertainment Software Rating Board.
O processo é simples. Uma desenvolvedora, ao terminar um game, manda ele para a ESRB. Um painel de experts da indústria joga o game, analisa todo o conteúdo dentro do game e dá a ele um selo que determina que público pode comprar o game. E (Everyone) é para todos, T é para adolescentes, M é para adultos, etc etc.
Duas coisas interessantes apareceram junto com a ESRB. A primeira é que as desenvolvedoras não eram obrigadas a entregar seus games para a ESRB… mas ao mesmo tempo, as grandes vendedoras de brinquedos começaram a recusar qualquer game sem o selo do painel. E a segunda é que, na maioria das vezes, as pessoas comprando os games não eram as crianças, mas sim os pais. E os pais, infelizmente, não se preocupavam muito com o conteúdo do game nas mãos deles. Afinal, quem nunca recebeu o game errado de presente?
Além do mais, a ESRB era apenas um método de regulação para os Estados Unidos. Em países como a Alemanha, por exemplo, games violentos eram banidos ou censurados. Até no Brasil a censura de games violentos acontecia, como no caso de Carmageddon, em 1997, onde a distribuidora brasileira do game foi forçada a tirar ele das lojas.
“Não há vidas extras no mundo real”
Mesmo com o machado da censura pertinho do pescoço dela, a industria de games não parou de explorar os limites da tecnologia e ver que coisas novas ela podia fazer. Em 1993, Doom foi lançado, revolucionando o modo como a violência era mostrada em um game. Pode-se dizer que Mortal Kombat é mais violento, mas a diferença é que em Doom, tudo é mostrado em primeira pessoa. Você está matando todos aquelas criaturas, e não Sub-Zero.
A questão do efeito da violência dos games nas crianças foi levantada novamente. Será que, ao matar monstros em Doom, a criança estava sendo influenciada a matar pessoas no mundo real? Muitas pesquisas foram feitas nesta época. Algumas diziam que sim, que video games violentos podiam levar a violência, especialmente no caso de crianças com doenças mentais.
Outros diziam que o argumento não fazia sentido, que correlação correlação não implica causalidade (ou seja, a conexão entre dois fatos não quer dizer que um leva ao outro). Não havia evidência de que um levava ao outro. Nenhuma criança havia matado após jogar videogames. E nenhuma pessoa saudável faria isso.
No dia 20 de Abril de 1999, os estudantes Eric Harris e Dylan Klebold, cometeram uma série de atrocidades que ficaram conhecidas como o massacre de Columbine. Durante a investigação feita pelo FBI, foi descoberto que os dois eram grande fãs de Doom. Eric também era um modder do game, e havia criado uma versão da primeira fase com mais sangue e as palavras “MATEM TODOS ELES” espalhadas pelos arquivos do game.
Ao mesmo tempo, o jovem Mateus da Costa Meira está sendo julgado por ter disparado uma submetralhadora portátil contra pessoas da platéia de uma sala de cinema de um shopping na cidade de São Paulo. Seu advogado tenta alegar insanidade mental, dizendo que o garoto foi influenciado pelo game Duke Nukem 3D. As alegações não funcionam e Mateus vai preso.
Os dois atos causam grandes ondas na industria dos games. No Brasil, Duke Nukem 3D é imediatamente banido, apesar de ter sido lançado em 1996. Já nos Estados Unidos, o então candidato a presidência George Bush diz que era necessário mais auto-regulação no estilo da ESRB, só que no final o papel de escolher que games as crianças poderiam jogar ou não estava nas mãos dos pais, e não do governo. A prefeitura de Indianapolis nos Estados Unidos passa uma lei que diz que crianças não podem estar em arcades desacompanhadas.
O pânico moral retorna ao mesmo tempo em que famílias das vitimas de Columbine processam desenvolvedoras de videogames por alegadamente causarem o massacre. No meio desta confusão, uma figura aparece como o líder do movimento anti-games…
Grand Theft Thompson
Como falar da censura dos games sem falar de Jack Thompson? Em 1997, o então advogado da Flórida processou múltiplas companhias de várias áreas do entretenimento (dentre elas os games) em nome dos pais de três garotas que foram mortas por um atirador de colégio que havia sido ‘inspirado’ pela cultura pop.
O caso não levou a nada, e o juiz ainda mencionou que “concordar com o Sr. Thompson seria dar o poder aos malucos da sociedade de declarar o que os outros podem ler, ver ou ouvir com as suas ações maléficas.” Mesmo assim, Thompson continuou a fazer palestras e discursos sobre o perigo que os games trariam para a sociedade, especialmente após o massacre de Columbine. Foi apenas em 2001 que Thompson conheceu seu maior inimigo: a Rockstar Games.
Com o lançamento de Grand Theft Auto III, a mídia novamente se virou para o poder da violência sobre os games, e Thompson liderou o avanço contra o game. Interessantemente, no mesmo ano, o Cirurgião Geral dos Estados Unidos, David Satcher, lançou uma pesquisa mostrando que a violência dos games não tinha um grande impacto na vida dos jovens. A pesquisa foi abafada por uma proposta de lei introduzida em 2003 que tornaria um crime vender games violentos para crianças.
O sucesso inesperado de GTA III e de sua eventual sequência Vice City apenas aumentaram o interesse da mídia e da população sobre uma possível conexão entre games e violência. Thompson continuou sua ‘batalha’, processando a Rockstar Games múltiplas vezes, sempre com a mesma razão: a desenvolvedora era culpada pelos crimes realizados por jovens que haviam sido ‘influenciados’ pelo game. Todos os casos de Thompson deram na mesma: uma perda total. Ele precisava de um trunfo, uma arma secreta… algo que nem a própria Rockstar sabia sobre.
Durante o desenvolvimento de San Andreas, a Rockstar tinha planejado e até criado um minigame onde você poderia transar com as namoradas do protagonista, Carl Johnson. Não querendo causar problema com a ESRB, a desenvolvedora abandonou o minigame, mas o código dele ficou no disco. Não demorou muito até alguns jogadores aventureiros desbloquearem o minigame e soltarem o caos no mundo dos games.
O fato que o minigame estava escondido no disco de um modo que nenhum jogador comum podia encontrá-lo não importou para Jack Thompson, que logo processou a Rockstar Games, conseguindo o suporte de ninguém menos do que a então senadora Hillary Clinton, que prometeu introduzir leis que iriam oficialmente regular vendas de qualquer tipo de game.
A controvérsia era tanta que ela se espalhou pelo mundo todo, incluindo o Brasil. Em 2006, o senador Valdir Ruapp introduziu um projeto de lei que “(…) caracterizaria como crime o ato de fabricar, importar, distribuir, manter em depósito ou comercializar jogos de videogames ofensivos aos costumes, às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos (…)” Ou seja, praticamente qualquer game.
Isto foi seguido, em 2008, pela proibição dos games Counter Strike e EverQuest. O primeiro graças a um mapa retratando uma favela do Rio, que especialistas diziam “ensinar táticas de guerra”, e o segundo pois mais especialistas diziam que o RPG online “leva o jogador ao total desvirtuamento e conflitos psicológicos ‘pesados’; pois as tarefas que este recebe, podem ser boas ou más”. As duas decisões foram revertidas um ano depois.
Esta ‘loucura da censura’, como o período foi chamado, acabou tendo o efeito contrário para ativistas anti-games. Nos anos seguintes, a ESRB entrou com processos no Supremo Tribunal da Justiça Americana, argumentando que leis proibindo a venda de games para menores eram inconstitucionais e iam contra as ações da própria ESRB. Quando Thompson processou a Rockstar pelo game Bully, dizendo que ele era um ‘simulador de Columbine‘, o juiz respondeu que o game ‘tinha menos violência do que vemos na televisão hoje em dia’.
No final, Thompson acabou provando do próprio veneno, quando em 2007, a Take Two, distribuidora dos games da Rockstar, processou o advogado por tentar impedir que o produto deles seja vendido. O ativista anti-games se viu enrolado nos mesmos labirintos legais que ele havia usado nos últimos dez anos, eventualmente concordando a um acordo feito fora do tribunal, pondo um fim a guerra entre os dois inimigos.
A lei contra-ataca
No ano de 2005, o então senador Leland Yee introduziu uma lei banindo a venda de games violentos para crianças na Califórnia, uma lei tão mal-redigida que advogados descobriram que suas limitações se referiam não a video games violentos, mas sim a só um video game violento: Postal 2, que também havia sido banido em outros países. Esta lei, no entanto, foi levada para o Supremo Tribunal em 2011 e contestada pelos vendedores de games, dizendo que ela infringia nos direitos de livre expressão dos games.
A questão não era mais se games violentos levavam a violência no mundo real, mas sim se games eram arte. Porque se a resposta a essa questão fosse ‘sim’, então eles estavam protegidos pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que dizia que ‘todas as formas de arte tem direito a liberdade de expressão’. O Supremo Tribunal, em um voto de 7 a favor e 2 contra, decidiu que sim, games eram arte.
“Como os livros, peças e filmes que vieram antes deles, video games comunicam ideias- e até mensagens sociais- por meio de mecânicas literárias familiares (como personagens, dialogo, história e música) e por características distintas do meio (como a interação entre jogador e mundo virtual),” disse o Juiz Antonin Scalia na deliberação final do Supremo Tribunal. “Isto é o suficiente para dar a eles a proteção da Primeira Emenda.”
Será este o fim dos processos contra os games? Provavelmente não. A questão de se video games levam a violência permanece até hoje, mesmo com várias pesquisas mostrando que não. E a vitória da Primeira Emenda funciona apenas para os Estados Unidos, com países europeus insistindo em censurar cenas de games recentes como South Park: The Stick Of Truth. Até no Brasil houve a ameaça de uma possível censura, com a lei do senador Ruapp voltando para assombrar os gamers em 2012, antes de ser engavetada.
A verdade é que os video games são relativamente novos. Enquanto o cinema está conosco há mais de 100 anos, os games acabaram de fazer 40. Muitos obstáculos ainda irão aparecer… e felizmente, nenhum deles se chamará Jack Thompson, já que o nosso grande ‘amigo’ acabou perdendo o direito de representar a lei no tribunal após anos de abusar desta.
Se Thompson fez algo de bom, foi lembrar a comunidade gamer que a nossa diversão também é uma forma de expressão. Ela tem o direito de ser livre, seja nas dunas majestosas de Journey ou em uma partida acirrada de DOTA 2 ou na violência sem controles de Hatred. Porque a verdade é que até os mais acirrados ativistas anti-gamers são motivados pelo medo, e todos nós podemos um dia ser parte do mais novo pânico moral.
Fontes
No final de todo De Volta Ao Arkade, providenciamos nossas fontes para os interessados no assunto realizarem uma pesquisa mais detalhada.
- Blood Code: The History and Future of Video Game Censorship por Jeffrey O’Holleran. Artigo online. 2010.
- Masters of Doom por David Kushner. Livro sobre o desenvolvimento de Doom. 2003.
- Jacked: The Outlaw Story of Grand Theft Auto por David Kushner. Livro sobre o desenvolvimento de GTA. 2012.
- Jack Thompson. Artigo online na Wikipédia.
- A brief history of video game censorship, bans and regulations por Mark Brown. Post no website Pocketgamer. 2015.
- A timeline of video game controversies. Website da National Coalition Against Censorship. 2010.
- Game Censorship. Website.
- The Agony and the Exidy: A History of Video Game Violence and the Legacy of Death Race por Carly Kocurek. Artigo online. 2012.
- Nintendo Censorship por Jim McCullough. Website.